terça-feira, 19 de agosto de 2008

Tarde

Hoje era um dia como outro qualquer. Uma tarde vazia como foi a de ontem e como seria a de amanhã.O sujeito tinha o apelido de Lontra. Ele detestava ser chamado assim, mas quase ninguém o conhecia por outro nome. Até a sua mãe o chamava para o almoço assim.

Deitado no seu quarto, ele contemplava longamente as pequenas rachaduras da pintura num canto da parede. Depois, variava a paisagem e ficava eternamente observando as pás do ventilador de teto girando preguiçosamente. Então, voltava a vigiar as rachaduras. E as horas se passavam enquanto Stanley Clarke destruia seu baixo no micro system.


Às vezes, Lontra olhava pela janela e via a paisagem sempre monocromática. Sua mãe podia mandar colocar um vitral coloridíssimo como os da catedral que não adiantaria. O mundo lá fora continuaria sem cor. Preto, cinza e branco. Sem graça.E as horas se passavam enquanto ele botava o cd do Stanley Clarke para tocar outra vez, e de novo, e mais uma vez.


A noite chega e Lontra vai aliviar a mente. Andando pelas mal-iluminadas esquinas das ruas de baixo, pensamentos ralos e escolhas improváveis sacolejam no interior do seu crânio: Encontrar os malucos para caçar algum viadinho desavisado e refazer a cara dele pelo avesso, o que seria legal, mas nem tanto. Já perdeu um bocado da graça, é sempre a mesma coisa, os restos do indivíduo no chão, a partilha da grana dele, goró e bagulho para terminar. Ou então, dar umas bandas para os lados do velho rio. Emporcalhado e sujo. Ele parece um irmão mais velho, a quem você sempre pode recorrer quando o bicho pega ou quando não existe outra saída. Ele está sempre ali. Mesmo que seja para botar o dedo no seu nariz e dizer que você chegou no fundo do poço, no fim da linha.Só quando você chega lá embaixo, bem ao fundo, a verdade se mostra completamente.